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Memorinhas

A. A. de Assis


Alguns registros para a história da Trova - Maringá, 2013


Pimenta na Língua


Abril de 1970, durante o II Festival Brasileiro de Trovadores, em Maringá-PR. Presentes os mais prestigiados trovadores brasileiros da época, entre os quais Barreto Coutinho, médico pernambucano, então residente em Curitiba.

Barreto Coutinho é o célebre autor da trova mais conhecida da língua portuguesa: “Eu vi minha mãe rezando / aos pés da Virgem Maria. / Era uma Santa escutando / o que outra santa dizia”.

Numa rodada de trovas de humor, cometi um gravíssimo pecado. Diante de Luiz Otávio, J.G. de Araújo Jorge, Aparício Fernandes, Magdalena Léa, José Maria Machado de Araújo, Maria Nascimento, Élton Carvalho, Vera Vargas, Colbert Rangel Coelho, Carlos Guimarães, e mais um punhado de grandes mestres da trova, deu-me na telha fazer uma paródia em cima dos lindos versos do Barreto: Vi minha sogra tentando / enrodilhar-se outro dia. Era uma cobra imitando / o que outra cobra fazia...

Imagine a reação do querido poeta. Pior: ele usava bengala. E a dita cuja soou impiedosa em minha cabeça. Até hoje dói. Não tanto pela pancada, mas pelo remorso de haver brincado com a obra-prima de um primoroso trovador.

Pedi desculpas, beijei-lhe as mãos. Ele sorriu. E disse apenas: “Tá bem, menino, mas de outra vez eu lhe ponho pimenta na língua”.


O jipe salvador

Novembro de 1965. Primeiros Jogos Florais de Bandeirantes, norte do Paraná. Alguns de nós ficamos num hotelzinho no centro da cidade. Aparício Fernandes hospedou-se na casa do dono da festa, Adalberto Dutra de Resende. Outros grandes astros, entre os quais Luiz Otávio, JG de Araújo Jorge, Octávio Babo Filho, Carolina Ramos, Lery Guimarães, Eno Thedoro Wanke, Pedro Guedes, F. Luzia Neto, ficaram num hotel-fazenda, na época o mais chique da região, a cerca de 12 quilômetros, com acesso por uma estradinha rural de terra.

A solenidade de premiação, com jantar, declamação, cantos, discursos, bailados etc., terminou por volta das duas da madrugada. Chovia de dar gosto. Ou nem tanto. Para quem ia dormir no tal hotel bacana deu mesmo foi choro. Adalberto levou-os numa kombi, que, todavia, após uns três quilômetros, caiu num atoleiro, e de tal jeito que não dava para ir nem para a frente nem para trás. E daí? Daí que o grupo decidiu tirar os sapatos, arregaçar as calças e voltar a pé, todo mundo para a casa do Adalberto, onde aliás ninguém dormiu, até porque nem havia cama para tanta gente.

Eno, sua esposa Irma e mais um corajoso (não me lembro quem) foram os únicos a bancar os heróis, preferindo enfrentar o barro e seguir caminhando para o hotel. Só que se perderam na escuridão e foram bater numa espécie de escola agrícola. Por sorte, ao saber que se tratava de poetas (cuja presença em Bandeirantes havia sido badalada pelo rádio), o caseiro os recebeu com especial carinho. Gentilíssimo, o homem se vestiu, pegou o jipe e conduziu os três por mais uns oito quilômetros, até a bela hospedaria. No fim, salvaram-se todos, com muita história para contar no dia seguinte. Perda total, apenas o engomadíssimo terno branco do Eno, que provavelmente ele nem tenha levado de volta para casa...


Dois casos da política

O noroeste do estado do Rio de Janeiro (São Fidélis, Cambuci, Itaocara, Pádua, Miracema...) é riquíssimo em folclore político. O povo de lá se delicia recordando historinhas encantadoras. Conto-lhes duas.

1. Dizem lá, por exemplo, que um poeta (de Cambuci, se me não engano) decidiu concorrer à Câmara Municipal. Muito conhecido na cidade, limitou-se a sair de casa em casa distribuindo um “santinho” em que estava escrito assim: “Amigo, sou candidato / a deputado do mato, / isto é: vereador. / Se não tens em quem votar, / não é preciso encucar, / vota ni mim por favor!”. Foi eleito.

2. Início dos anos 1960. Famoso poeta estava em andanças pelo interior fluminense como candidato a deputado. Num dos comícios, um orador que curtia falar difícil saudou-o com estabanada saraivada de adjetivos: “Ilustre, insigne, ínclito, preclaro e mentecapto poeta das multidões!...” O candidato sorriu meio sem jeito, respirou, respondeu: “Chamaste-me ‘mentecapto’, / mas tudo bem, caro irmão... / A mim me importa de facto / é a tua santa intenção...” Foi também eleito.

Missão inédita

No final dos anos 1950, os agentes do IBGE, em todo o Brasil, cumpriram missão inédita, e muito bonita. A ideia partiu do saudoso trovador carioca Delmar Barrão, na época alto funcionário daquele instituto, colaborando com Luiz Otávio numa ampla coleta nacional de trovas folclóricas. A cada agente solicitou-se preencher um formulário no qual foram anotadas as trovas populares (anônimas) conhecidas em sua região. Com isso Luiz Otávio montou riquíssimo arquivo, e foi nessa mina que ele e JG de Araújo Jorge, em 1962, garimparam as 100 trovas que lhes pareceram mais interessantes para compor o vulume 8 da célebre coleção “Trovadores brasileiros”. Esse livro é hoje considerado um tesourinho. Duas amostras: “A dor, por maior que seja, / se comprime, se contrai. / Eu nunca vi dor no mundo / que não coubesse num ai.” – “Eu quero bem, mas não digo / a quem é que eu quero bem. / Quero que saibam que eu quero, / mas que não saibam a quem”.

São Sebastião!

Aparício Fernandes contava o caso de um trovador que defendia estranha tese segundo a qual “a medida do verso é questão de velocidade”. Dava exemplos “convincentes" como este, em que o último verso, para se tornar “setissílabo”, exigiria apenas ser dito bem rapidinho: “Apaixonei-me por ti, / meu amor, meu coração, / assim que te conheci / na procissão do padroeiro São Sebastião!


Desd’antanhos...

Quem costuma participar de bancas julgadoras de concursos de trovas certamente guarda algumas “pérolas” encontradas em meio às centenas de bons trabalhos enviados. Na minha coleção, destaco uma “preciosidade” garimpada durante a avaliação de um certame realizado no início da década de 1970. Anotem lá: “A trova é, pois, comprimido / condensando grã sentir; / é pensamento exprimido / desd’antanhos ao porvir!”.


O lambuzento mimeógrafo do Príncipe

Meados de 1965. Do hotel onde eu estava, de passagem pelo Rio de Janeiro, telefonei para Luiz Otávio. Ele, desejando encompridar a prosa, convidou-me para jantar em sua casa, em Vila Isabel. Encontrei-o embrulhado num avental de borracha, todo sujo de tinta. Explicou: estava na lida em seu famoso mimeógrafo, imprimindo um boletim do GBT – Grêmio Brasileiro de Trovadores, precursor de nossa atual UBT.

Os que têm mais de 50 anos certamente se lembram do velho mimeógrafo a álcool, uma complicada engenhoca muito usada então nas escolas e escritórios. A correspondência de Luiz Otávio era tão volumosa que ele precisou instalar em sua biblioteca uma daquelas rústicas impressoras. Ficava ali às vezes até de madrugada preparando o material que pelo correio enviava aos trovadores de todo o Brasil e de outros países.

Hoje me ponho a matutar sobre o que aquele extraordinário apóstolo da trova faria se tivesse podido contar com os recursos do computador e da internet. Se com a pachorrenta maquininha de escrever e o lambuzento mimeógrafo conseguiu fazer da trova o maior sucesso literário do século 20, imagine se tivesse à sua disposição as facilidades com que agora contamos...

Ah, sim... mas o que eu queria mesmo dizer era que durante aquele jantar discutimos os primeiros detalhes com vistas à realização do I Festival Brasileiro de Trovadores, megaevento que em abril de 1966 reuniu em Maringá os mais badalados craques da trova de todo o Brasil na época.

Trova histórica

Luiz Otávio teve um primo poeta, Valentim Perez de Oliveira Neto, o qual, segundo consta, fez uma única trova na vida. Por volta de 1950, vendo o Príncipe animado com as primeiras pesquisas visando à edição do memorável “Meus irmãos, os trovadores”, o primo escreveu estes versos, que resultaram antológicos: “Meiga forma abandonada, / que merece amor e estudo. / – No espaço de um quase nada, / pode dizer quase tudo”!


Palavra-tema

Fez-se em São Fidélis-RJ, em 1962, um concurso de trovas com o tema “sonho”. O regulamento dizia ser obrigatório o uso da palavra-tema. Um concorrente levou a coisa exageradamente a sério, e mandou a trova dele usando três vezes a palavra “tema”. Confira: “Não TEMA os sonhos, não TEMA, / não TEMA nem pesadelos. / Muito mais grave é o problema / de estar perdendo os cabelos!”


Eu sou o Eno

Meados de 1964. Na época eu trabalhava na Rádio Cultura de Maringá. Lá chegou à minha procura um homem alto, óculos grossos, farto sorriso, jeito de alemão. Apresentou-se: “Eu sou o Eno”, e abraçou-me forte. Eno Theodoro Wanke, paranaense de Ponta Grossa, engenheiro da Petrobras, prestigiado poeta, então residente em Santos. Já nos conhecíamos havia algum tempo, via correspondência. Aquele era, porém, nosso primeiro encontro ao vivo. Disse que estava acampado numa barraca no Horto Florestal de Maringá, com Irma e os filhos. De noite ele trouxe a família para jantar em minha casa, e o papo foi longo e belo. Em 1970 ele se desentendeu com Luiz Otávio, produzindo grave crise no trovismo. Nessa ocasião, em consequência, tivemos algumas conversas azedas, porque tomei o partido do Luiz. Mas nem por isso a amizade acabou. Eno continuou me enviando, sempre com simpática dedicatória, todos os seus livros e outras publicações. Várias vezes nos encontramos em festas literárias, e até pouco antes do seu falecimento batemos papos por telefone. Foi um poeta de valor, sem dúvida um dos mais fecundos historiadores da trova. Polêmico, sim, mas o que realmente quero guardar dele são os momentos bons. Além das suas belas trovas, como esta que foi primeiro lugar num concurso em Maringá e que virou samba com música de Joubert de Carvalho: “O Rio de fevereiro / até no céu se intromete: / a lua vira pandeiro, / estrelas viram confete”.


Tio Joca

Desde menino aprendi a gostar de poesia. Em grande parte por influência de minha mãe e do meu avô maestro. Mas penso que um pouquinho devo também a um personagem fascinante, que trabalhava no velho trem da Leopoldina Railway, no trecho entre Campos e Miracema-RJ. Os passageiros, quase todos conhecidos dele, chamavam-no Tio Joca.

Simpatia em pessoa, tinha por função percorrer os vagões picotando ou recolhendo as passagens. Não bastasse o seu generoso sorriso resistente a quaisquer humores da vida, Tio Joca, redondilheiro de truz, animava a viagem fazendo versinhos. Antes de cada estação, ele ia de ponta a ponta do trem recitando suas alegres cantigas. Tal encanto isso me despertava, que ainda hoje me lembro de algumas:

– Quem vai pra Ernesto Machado, me dê o bilhete, e obrigado.

– Pra São Fidélis, quem vai, dá a passagem pro papai.

– Quem desce no Grumarim, dê a passagem pra mim.

– Passageiros de Pureza, passagem por gentileza.

– Quem vai para Cambuci, entregue o bilhete aqui.

– Quem vai para Três Irmãos, passagem nas minhas mãos.

Sei lá, mas sempre desconfiei de que a influência do bom Tio Joca deveria ser estudada com maior atenção. É que naquele trenzinho maria-fumaça viajavam quase diariamente numerosos jovens que iam das fazendas para as cidades frequentar a escola. E pode ter sido bem mais do que mera coincidência o fato de muitos daqueles moços e moças terem virado poetas algum tempo depois...


Por que A. A. de Assis?

Eu tinha 16 anos de idade. A poucos metros de nossa casa, em São Fidélis-RJ, havia uma gráfica onde se imprimia “O Fidelense” (“um hebdomadário independente a serviço da coletividade”). O jornal pertencia ao deputado Gouveia de Abreu (Doutor Dó), mas quem o dirigia era o Doutor Jacy Seixas. O impressor era o Fidélis Subieta. Um dia criei coragem, escrevi um artigo e levei lá. Disse ao impressor: “Peça ao Doutor Jacy que dê uma olhada e veja se dá para publicar”.

Não falei a mais ninguém sobre o tal escrito. No domingo seguinte, fui logo cedinho comprar o jornal... Tremi nas pernas: lá estava, ainda com aquele delicioso cheirinho de tinta, o texto que inaugurava minha vida de jornalista. Estranhei, porém, um detalhe: em vez de Antonio Augusto de Assis, como assinei no original, o nome que saiu embaixo do título foi A. A. de Assis.

Na segunda-feira perguntei ao Subieta o que acontecera. Fácil de entender: naquela época as gráficas trabalhavam com tipos móveis. Cada fonte de tipos ficava numa caixa e o tipógrafo ia catando letra por letra para compor a matéria. E havia o costume de escrever os nomes dos autores de artigos utilizando os tipos chamados “itálicos”, aqueles inclinadinhos. Deu-se, todavia, que a caixa de itálicos estava desfalcada, faltando a letra “t”, daí a impossibilidade de escrever tanto Antonio quanto Augusto. E foi assim que, por conta e arte desse genial tipógrafo, virei A. A. de Assis.


Bela resposta

O inesquecível trovador potiguar Aparício Fernandes embarcou num Ita em Natal-RN, em abril de 1952, com 17 anos de idade, de mudança para o Rio de Janeiro. Gravou a cena em uma trova antológica: “Parti do Norte chorando, / que coisa triste, meu Deus!... / – Eu vi o mar soluçando / e o coqueiral dando adeus...”. Passados 16 anos, Aparício voltou a Natal, onde foi homenageado pela Academia de Trovas do Rio Grande do Norte. O poeta José Amaral recebeu-o com esta bela resposta: “Voltaste ao Norte sorrindo, / nós te abraçamos cantando: / – o coqueiral te aplaudindo / e o verde mar te beijando...”


Cabeça de vento

Na década de 1920, o “O Jornal”, do Rio de Janeiro, promoveu diversos concursos de trovas, mais ou menos como os que hoje se realizam. A diferença é que o autor podia enviar quantas quadras quisesse, daí chegarem à redação milhares delas, vindas de todas as regiões do Brasil. Tais concursos revelaram excelentes trovadores, que ainda hoje homenageamos com a nossa carinhosa admiração. Em 1923, por exemplo, o primeiro lugar coube a Djalma Andrade, com uma trova que se consagraria como uma das melhores até hoje produzidas no gênero humorismo: “Tua modista, senhora, / mostrou ter grande talento, / prendendo um chapéu de plumas / numa cabeça de vento...”


Pausa para a poesia

Em sua edição de 18-4-1970, portanto há pouco mais de 40 anos, o jornal “Folha do Norte do Paraná” publicou um editorial intitulado “Pausa para a poesia”, a propósito da realização do II Festival Brasileiro de Trovadores, sediado em Maringá. Veja um trechinho do texto: “Os trovadores abrem nossos olhos e nossa alma para a contemplação de coisas simples e belas, como a flor, o luar, as estrelas, e para o cultivo de nobres sentimentos, como a bondade, a esperança, a alegria, o amor (...) São, todos eles, muito cordiais. Na maioria dos casos, na vida particular, exercem ou exerceram funções de alta responsabilidade, alguns ocupando elevados postos, mas não perdem nunca a modéstia, aquele jeito descontraído e franco de lidar com toda gente. São, em geral, excelentes pessoas, e sugerimos que ninguém perca a oportunidade de conversar com eles”.


O “poetudo”

Durante toda a década de 1960, a Rádio Globo, do Rio de Janeiro, manteve no ar, como parte do famoso “Programa Luiz de Carvalho”, o quadro “Trovas e Trovadores”, produzido por Aparício Fernandes. De segunda a sábado, às 10 da manhã, Luiz de Carvalho apresentava breve biografia de um trovador e dizia algumas trovas do autor focalizado. Em razão da enorme audiência, Aparício recebia um montão de cartas enviadas por poetas de todos os quilates, interessados em “acontecer” no programa. Alguns chegavam até a procurá-lo em casa, como um que lá apareceu certo dia assim se apresentando: “Sou um poetudo... faço de tudo em poesia: trova, haicai, soneto, cordel, até hino se desafiado for...” E cantou, dizendo ser a obra mais recente de sua autoria: “Flamengo, Flamengo, tua glória é lutar... Flamengo, Flamengo, campeão de terra e mar...”. Ainda bem que o Paulo de Magalhães (verdadeiro autor do hino) jamais ficou sabendo disso.


Gratuidade sem mistérios

Primeiros Jogos Florais de Corumbá, 1968. Ficamos hospedados por vários dias no melhor hotel da cidade. Numa certa manhã, Colbert Rangel Coelho voltou da rua todo papudo, dizendo que acabara de constatar o enorme prestígio de que desfrutava entre os corumbaenses. Ele havia entrado num salão de cabeleireiros para cortar a barba e, ao final, ao perguntar o preço, responderam-lhe que o salão se sentia muito honrado em servi-lo e que não havia nada a pagar...

Margarida Lopes de Almeida, na época a mais famosa declamadora do Brasil (filha da romancista Júlia Lopes de Almeida), ouviu a proeza do Colbert e comentou: “Vejam que coisa... aconteceu o mesmo comigo ontem à tarde numa lanchonete onde tomei excelente sorvete. Não me deixaram pagar...”

Élton Carvalho aparteou: “Também não me permitiram pagar o cafezinho que tomei num bar em companhia do Abbud e do Assis...” E Luiz Otávio acrescentou: “Pois nem o engraxate da praça permitiu que eu o gratificasse pelo brilho que deu nos meus sapatos...”

J. G. de Araújo Jorge entrou na conversa e matou a charada: “Não tem mistério coisa nenhuma... O que está acontecendo, segundo me segredou ontem o dono da rádio, é que, antes de nós chegarmos, eles fizeram uma campanha pedindo aos comerciantes e prestadores de serviços que nada cobrassem dos poetas visitantes... Daí que nem o homem do caminhão de caldo de cana aceitou meu dinheirinho. Retribuí o carinho dele oferecendo-lhe um livro de trovas...”

Irmãos trovadores

Década de 1960, Rio de Janeiro. Um grupo de poetas à mesa, julgando as trovas de um concurso. Um dos presentes ia abrindo os envelopões e tirando de dentro deles os envelopinhos, enquanto outro, ao lado, fazia em voz alta a leitura de cada trova. A ordem era ninguém fazer comentários durante a primeira leitura, mas sempre havia alguém que não conseguia evitar o deboche quando ecoava na sala uma quadra meio desajeitada. Luiz Otávio ficava muito bravo quando isso acontecia, e passava um pito na turma: “Por menos brilhante que seja uma trova, ela merece máximo respeito”. E explicava: “Toda trova é filha de uma irmã ou de um irmão nosso, portanto é nossa sobrinha... dá para entender?!...”. Claro que dava.

Com essas e outras atitudes, o Príncipe não perdia oportunidade de chamar a atenção para o fato de que somos uma tribo diferente. Não por nenhum mérito especial, mas pelo dom com que nascemos. Somos assim, e ponto.


A festa das normalistas

Em 1964, quando a UBT era ainda GBT e o Rio de Janeiro era ainda estado da Guanabara, realizaram-se os I Jogos Florais das Normalistas. A iniciativa, de Luiz Otávio, teve o apoio oficial da Secretaria da Educação e Cultura da Guanabara, amparando-se no objetivo de “estimular o gosto pela poesia e pela música entre os jovens”. Participaram estudantes de 32 Escolas Normais. A festa de encerramento superlotou o Teatro Municipal do Rio na noite de 10 de outubro daquele ano, com ampla cobertura do rádio, da imprensa e da televisão. Luiz Otávio comentou a respeito: “Foi uma festa única no Brasil e talvez no mundo, pois fizemos um retorno à Idade Média, unindo a música e a poesia”.


Trevos de quatro versos

J. G. de Araújo Jorge, que ao longo de várias décadas foi o poeta mais lido e ouvido em todo o Brasil, publicou em 1964 o livro “Trevo de quatro versos”, no qual faz entusiásticas declarações de amor à trova. A propósito do título da obra, escreve o autor: “Sejam felizes ou não, / cantando instantes diversos, / as trovas, no coração, / são trevos de quatro versos”. E na página seguinte: “Rico eu sou, mesmo sem ouro, / e da riqueza dou provas. / Eis aqui o meu tesouro: / minha sacola de trovas”. Mais adiante, acrescenta: “Ao ler uma bela trova, / depois que pronta ficou, / quem calcula a dura prova / por que o poeta passou?”. Mais uma?... Vá lá: “Tudo é trova: a flor, a onda, / a nuvem que passa ao léu... / E a lua, trova redonda / que a noite canta no céu!”


Coração, sino da gente

O primeiro poeta a conquistar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras por obra e graça de suas belas trovas foi Adelmar Tavares, em 1926. Em Portugal, o primeiro foi Antônio Correia de Oliveira, que, também pelos méritos de suas quadras inesquecíveis, assumiu em 1909 uma cadeira na célebre Academia de Ciências de Lisboa. É dele esta maravilha: “Sino, coração da aldeia; / coração, sino da gente. / Um a sentir quando bate, / outro a bater quando sente”.


Aparício não veio

Em meados de 1966, o saudosíssimo trovador Aparício Fernandes chegou a arrumar as malas, pronto para partir de mudança para Maringá. Tendo vários amigos na cidade e na vizinha Bandeirantes, e tendo pedido demissão do banco em que trabalhava no Rio de Janeiro (“poeta gosta de juras, não de juros...”), iria tentar a vida como jornalista no então eldorado paranaense. Só não concretizou o projeto porque, nas vésperas de viajar, recebeu irrecusável proposta de trabalho da editora carioca Freitas Bastos, onde faria o de que mais gostava: lidar com livros. Com isso o Paraná perdeu a chance de ter entre os seus poetas o extraordinário intelectual, que posteriormente ingressou na carreira jurídica e no Rio permaneceu até o precoce final de sua bela biografia.


São Fidélis, meu chão natal

São Fidélis-RJ, meu chão natal, contou sempre com vários grupos dedicados à atividade artístico-literária, entre os quais a Associação Cultural Fidelense, de cuja diretoria fiz parte no período de 1961 a meados de 1963. A Associação Cultural atuava em parceria com a seção fidelense do GBT – Grêmio Brasileiro de Trovadores, precursor da atual UBT. Os participantes das duas entidades eram praticamente os mesmos. Cito alguns: José Teóphilo Machado, Válter Simão, Evando Marinho Salim, Pedro Emílio, Antônio Roberto Fernandes, Aroldo Ramos, Ary Machado Barcelos, Alberto Peres Cordeiro, José Vicente Carneiro, Vera Lúcia Paixão Rodrigues, Silmar Barcelos Pontes, Haroldo Werneck, Ducila Guerrante Gomes.

Da região vizinha, contávamos com a colaboração de Ary de Oliveira, Manoel Baptista, Carolina Baptista (Cambuci), Gamaliel Borges Pinheiro (Itaocara), Jeanette De Cnop (Itaperuna), Osmar Barbosa (Miracema), além dos poetas de Campos, que por lá circulavam com frequência: Pedro Manhães, Walter Siqueira, Walter Silva, Edward Rodrigues e outros.

Promovemos numerosos eventos de grande repercussão, porém penso que os de maior importância para a história cultural da cidade foram três inesquecíveis festivais de poesia: 1961, 1962 e 1963.

O I Festival Fidelense de Poesia, realizado no período de 23 a 30 de julho de 1961, teve como paraninfos os poetas JG de Araújo Jorge e Luiz Otávio, ambos no auge do seu prestígio.

O II Festival, de 14 a 22 de julho de 1962, foi o mais animado de todos, incluindo um concurso de trovas, no qual se classificou em primeiro lugar Aparício Fernandes, poeta potiguar então residente no Rio de Janeiro.

O III Festival, em 1963, foi diferente. Fez-se o concurso de trovas em São Fidélis, classificando-se Luiz Otávio em primeiro lugar. Mas a festa de premiação realizou-se no Rio, num belo auditório localizado na Cinelândia.

Com aqueles festivais conseguimos projetar bastante São Fidélis nos meios literários, levando lá um punhado de famosos poetas, entre os quais, além de Luiz Otávio, Aparício e JG, outros igualmente ilustres, como Geir Campos, José Maria Machado de Araújo, Colbert Rangel Coelho, Zálkind Piatigórsky, Orlando Brito, Alberto Lima, Dalila Maia de Carvalho, Nancy Guahyba Martha, Edgard Barcelos Cerqueira.


Trovadoras desaparecidas

Abril de 1966, I Festival Brasileiro de Trovadores, em Maringá. Vários dias de festas, com intensa programação. Um dos itens foi um churrasco de boi no rolete (um boi inteiro), oferecido por um fazendeiro amigo . A propriedade ficava a cerca de 20km do centro da cidade e os trovadores foram levados em diversos carros postos à disposição. O pessoal já estava se fartando na costela assada quando, a certa altura, alguém deu conta de que lá não estavam Maria Thereza Cavalheiro, Amaryllis e mais duas trovadoras de cujos nomes não me lembro. Preocupação geral. Finalmente, lá pelas 3 da tarde, chegou a notícia de que o motorista delas havia errado o caminho e se perdera no meio dos carreadores do cafezal. Resumo da ópera: cansadas, empoeiradas e com o estômago vazio, as “desaparecidas” haviam voltado para o hotel. Mais tarde, o secretário da Educação, Luiz Gabriel, soube da história e levou para elas uma cesta de substanciosos sanduíches.


Improviso ou pronto na caixola?

No mesmo abril de 1966, também em Maringá, viveu-se um alto momento da trova. JG de Araújo Jorge estava no auge do seu prestígio. A prefeitura havia armado um palanque em frente à biblioteca municipal para que os trovadores apresentassem ao público as suas trovas. Acontece que a notícia saíra com destaque nos jornais locais do dia e nas emissoras de rádio, dando destaque para a presença do JG. Resultado: apareceu lá uma multidão de fãs do poeta e apreciadores da poesia em geral. Com isso, o que seria um pequeno recital acabou virando um comício de trovas. O prefeito da época, o médico Luiz Moreira de Carvalho, empolgou-se de tal modo que fez seu discurso também trovas. Até hoje não se sabe se criou os versos ali na hora, ou se os havia feito em casa e trouxera o “improviso” pronto na caixola. Mas bonito foi.


Crise de inspiração

Depoimento de Manuel Bandeira, para quem por acaso esteja em crise de inspiração: “A bica secou há mais de quatro meses. Sou assim. Tem vezes que levo mais de um ano sem fazer um verso. Quando já me esqueci de ter sido poeta, um belo dia, na ocasião menos própria às vezes, vem a graça de Deus de repente... Então faço três, quatro coisas a seguir” (Em carta a Antônio de Alcântara Machado, com data de 13 de outubro de 1926).


Trovadora egoísta

Esta memorinha é recente, lembra um fato ocorrido há coisa de sete ou oito anos, mas não resisto à tentação de contar a vocês. Por imaginar que todo trovador goste de ler trovas, incluí na lista dos amigos e amigas aos quais remeto mensalmente pela internet a revista Trovia o endereço de determinada trovadora. Três edições depois, ela, com a maior naturalidade, e sem nenhum rodeio, mandou-me um e-mail dizendo mais ou menos o seguinte: “Agradeço-lhe a gentileza de me encaminhar seu boletim, mas, por favor, envie apenas quando sair nele alguma trova minha, pois que não disponho de tempo para ler as de outras pessoas”. Fiz o que você também certamente faria: tirei o endereço dela da lista. E nunca mais ouvi falar da cuja.


Nunca mais parei...

Nova Friburgo, início de 1960. Conheci pessoalmente o trovador Luiz Otávio. Ele ali estava, em companhia do poeta J. G. de Araújo Jorge, cuidando dos preparativos dos I Jogos Florais da charmosa cidade serrana, belíssima festa que marcou o início do animado movimento literário que nos anos seguintes espalharia a “febre” do trovismo Brasil afora.

Luiz Otávio, a quem fui apresentado pelo também trovador Delmar Barrão, “intimou-me” a aderir àquele movimento. Expliquei que minha iniciação literária tinha sido noutro gênero e tentei tirar o corpo fora, porém a argumentação foi irresistível. “Você pode escrever o tipo de poesia que bem entender, disse ele, mas, se quiser ficar conhecido em todo o Brasil, comece a fazer trovas”. Essa conversa ocorreu faz mais de meio século. Comecei. Nunca mais parei. Não fiquei “conhecido em todo o Brasil”, no entanto posso dizer que em todo o Brasil tenho conhecidos, gente muito boa, amigos que, de tão queridos, chamo de irmãos e irmãs.


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